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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Entrevista a David Varela

por Ana Rita Matias


Aos 9 meses, David Varela foi diagnosticado com uma doença neuromuscular, definida, em termos genéricos, como uma falta de força muscular. A doença faz com que David esteja dependente de terceiros na ordem dos 94%, sendo capaz de movimentar pouco mais do que o seu dedo polegar. Apesar dos aparentes obstáculos e adversidades, um dos objetivos, dentro dos muitos de David, era entrar na Universidade e licenciar-se. Atualmente é formado em Sociologia pelo ISCTE-IUL e o primeiro aluno em Portugal a licenciar-se via videoconferência. Há histórias que merecem ser partilhadas. A do David é certamente uma delas.


David, dizes que a tua frase favorita é “O mundo unido se tornará justo”. Por onde deve começar a procura por essa união?
Essa união está sempre dentro de cada um, o que eu quero dizer com isso? Simples quando cada pessoa ver que sozinha não consegue fazer nada e que precisa sempre de outros então verá que a deficiência é algo comum. Nesse sentido acho que essa união deve nascer dentro de nós.

O poeta Agostinho da Silva disse que “A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade”. Pergunto-te: não achas que cultivar a nossa diferença é a única forma de mostrar o nosso vigor e fibra, aquilo que no fundo, nos torna únicos e especiais?
Cem porcento de acordo! Todos nós somos diferentes, uns mais baixos outros mais altos, uns mais gordos outros mais magros, mas isso não muda o que nos somos e como é a nossa personalidade. É a nossa personalidade e o que nós somos que faz sermos únicos, especiais e diferentes de todos os outros. Se fossemos todos iguais que piada tinha?

Quando é que a diferença se torna um problema?
Quando essa diferença é um problema para os outros. Muitas vezes, para não dizer quase sempre, o sentimento de diferença não vem de nós, mas sim da sociedade que nos rodeia. Os olhares, os sussurros, a vergonha, o facto de gostarem de nós e não admitirem por ser diferente, enfim é complicado…Mas para além dessas existe outra bem pior que são as barreiras arquitetónicas que nos impedem muitas vezes de sermos livres para andarmos nas nossas próprias ruas…Como vês o problema surge sempre dos outros.

És licenciado em Sociologia pelo ISCTE-IUL. O ensino superior foi sempre um objectivo? Queres-nos falar um pouco sobre o teu percurso académico?
Bem admito que sim…Desde que me lembro sempre pensei chegar á faculdade, tudo para ser alguém na vida. Mas nem tudo foi fácil, os meus pais tudo fizeram para que eu tivesse um ensino o mais normalizado possível. Nesse sentido fiz o 1º e 2º ciclo numa escola normal e de forma presencial. No decorrer do 6º ano a minha saúde começou a deteriora-se e fui obrigado a abandonar a escola. Tive 4 anos sem fazer nada e digo-te que foram os piores anos da minha vida. Nessa fase tive uma proposta médica para ser operado à coluna de modo a melhorar a minha qualidade de vida, essa operação era de alto risco mas eu não tinha nada a perder e resolvi arriscar, tudo com um só objetivo voltar a estudar. Assim foi, arrisquei e correu tudo bem, no entanto a minha mãe ficou com uma batata quente que era encontrar uma solução para eu voltar à escola, isto porque naquela época as escolas não tinham condições físicas nem humanas para me receber. A solução encontrada foi então a videoconferência. Mas como era um projeto inovador as coisas não foram assim tão fáceis, tendo professores e colegas que recusaram trabalhar. Apesar destas peripécias, consegui fazer o 3º ciclo e o secundário através de videoconferência. No fim do secundário surgiu o problema do ensino superior, pois apesar de tudo o ensino superior está sem qualquer legislação que proteja as pessoas portadoras de deficiência. Apesar disso arrisquei e candidatei-me ao ensino superior ao qual o ISCTE respondeu de forma positiva para pôr a videoconferência. Foram os 3 melhores anos da minha vida, onde fiz a licenciatura sem qualquer problema (3 anos) e onde descobri a noite, fui a festas, participei nas praxes e isto tudo graças aos fantásticos colegas, agora amigos, que proporcionaram a minha integração.

És dos primeiros alunos do Mundo a tirar um curso no Ensino Superior através de videoconferência. Penso que os nossos leitores terão muita curiosidade sobre como isso se processa.
Bem vou tentar explicar... A videoconferência consiste em ligar 2 pontos distantes fisicamente em direto e simultâneo ou seja permite que eu esteja ligado à sala de aula em direto, possa ver o quadro, ver os meus colegas, ver os professores e eles a mim, permite igualmente em simultâneo às imagens o áudio, ou seja permite falar, conversar e intervir como se estivesse na sala de aula. Para além disso permite outras funcionalidades, como o envio de ficheiros ou a partilha do monitor de ambos os dados.

Na base da tua experiência quais achas que possam ser as potencialidades deste método de ensino?
Bem as potencialidades deste método de ensino são fantásticas. Isto, porque permite a pessoas com limitações severas, que numa situação normal nunca chegariam a ter acesso ao ensino, permitir se formarem e se tornarem alguém na vida. No meu entender a videoconferência não tem só potencialidade no ensino, mas é também por exemplo no teletrabalho ou até na saúde. Para mim um dos meios de comunicação do futuro.

Ouvi dizer que és um rapaz de “projectos”, estás sempre a preparar alguma e nunca estás parado. O que é que tens feito, o que tens entre mãos e o que é que pretendes alcançar e realizar futuramente?
Como sabes disto tudo? (risos) Bem eu neste momento tenho um projeto ambicioso entre mãos. Eu pertenço à direção da Associação Portuguesa de Doentes Neuromusculares que tem sede no Porto, e desafiaram-me a coordenar uma equipa em Lisboa de modo a tentar expandir a associação para o sul do país, trata-se dum projeto ambicioso, porque teremos de apoiar mais de 100 doentes, criar atividades, ajudá-los e tentar dialogar com entidades públicas e privadas de modo a termos os apoios necessários e garantirmos os direitos dos doentes. Para o futuro para além desta coordenação voluntariosa e que acaba por usar os meus conhecimentos científicos, gostava muito de arranjar um estágio e ter um emprego. Depois de ter alcançado o sonho de tirar uma licenciatura, agora chegou o momento de tentar realizar o sonho de encontrar um emprego.

2 comentários:

  1. Realmente é um estilo diferente do comum, um texto entrevista, mas não é por causa disso que perde mérito, muito pelo contrário! Elaborar, estruturar e realizar uma entrevista coerente e interessante é um desafio, que satisfizeste com honra e glória!

    Focaste aspetos fascinantes, e confesso que a história comoveu-me. É sempre bom ser relembrado de que existem coisas na vida que damos por garantido, e que, na realidade, outras pessoas tiveram de lutar e se esforçar profundamente para conseguir. Faz-nos repensar as prioridades e o valor que damos às coisas.

    Creio que foste muito privilegiada por conhecer este rapaz e por o teres tido como colega de curso, as suas respostas e perspetivas perante a vida são verdadeiramente inspiradoras.

    É de realçar a importância sugerida pelo artigo no que toca a expandir os horizontes quanto à aceitação das deficiências e outras diferenças caraterísticas das pessoas, de modo a não deixar ninguém de parte no que toca aos direitos que consideramos básicos, tais como o mero deslocamento em espaços públicos e uma formação educativa superior.

    Adorei o texto! :-) Continua assim, que permanecerei expectante pelos futuros artigos! ;)

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  2. Obrigada pelas palavras simpáticas, amigo Lostio :) de facto fui, se há coisa que o David ensinou-me é que desistir dos nossos objetivos (há também quem lhe chame sonhos) é simplesmente proibido.
    Além disto, o exemplo do David mostra o quão democrático poderá ser o ensino on-line - ou o e-learning - Acessível a todos e em todo o lado! Neste aspeto penso que as universidades e as escolas portugueses devem ter, cada vez mais, uma palavra a dizer.

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