(«nuca», Gérard Castello-Lopes (D.R.)
Há instantes em
que a realidade desconexa, se desliga das premissas lógicas que normalmente
intuímos como certas, da vulgaridade com que tomamos a vida de todos os dias,
ordenada sem arrepios ou sobressaltos de maior que afectem a banalidade risível
das coisas.
Mas na verdade,
a realidade para cada um de nós não é assim: saltamos de um para outro assunto,
entrelaçamos pensamentos em histórias reais ou imaginadas das personagens
conhecidas ou não, com quem nos cruzamos, temos uma vida interior em que, como
agora se diz, se desconstrói a cada momento a linearidade primária em que bocejamos
as mais das vezes, produzindo enviesadas sinuosidades que nos fazem crer que
afinal somos diferentes do comum dos mortais.
Trazer à luz os
mundos interiores de que cada um é tecido, através das artes, nomeadamente da
literatura, é obra não ao alcance de muitos escribas. Expressar através de
palavras sentires de cada um de nós, de uma forma que nunca antes havíamos
pensado e reconhecer nela a diversidade de que o mundo é feito, só raros o
conseguem. Conseguir surpreender a cada livro, inovando o que já antes se achou
original sem bizarria, só me apercebi como leitora, em português, com Saramago,
Nuno Bragança, Lobo Antunes, Virgílio Ferreira e agora Gonçalo M. Tavares.
Ler “água, cão,
cavalo, cabeça”, prosseguir por “Um Homem: Klaus Klump”, devorar “Jerusalém” cirandar
pelo bairro dos génios e emocionar-se com “Uma Viagem à Índia” é uma obrigação
que nos devemos pelo respeito que nós e os outros nos impõem.
“Uma bala entra na pedra. Faz buraco. Animal
impaciente e rápido (a bala). Nos tijolos de pedra contamos uma, duas, três,
quatro, cinco, seis, sete. Sete balas. Umas por cima das outras. E há pelo
menos mais uma que acertou no menino. E uma outra que acertou no pai.
O pai tentava protegê-lo dos tiros, mas não
protegeu o filho todo. Não lhe tapou por completo o corpo com o seu corpo.
Também se encolhia, ele próprio, o pai. Porque o pai não é a mãe. Ao todo, no
mínimo, nove balas. Duas que mataram dois seres vivos, e sete balas na pedra
(…)”
“água, cão,
cavalo, cabeça”, pag. 37. Ed Caminho
“ Quando se está preso, uma das vontades é
urinar para cima de uma árvore. É completamente estúpido, mas penso vezes sem
conta nisto. Com o pénis entumescido e a bexiga cheia, chegar ao pé de uma
árvore e urinar. Apenas isto.
Aqui dentro a natureza usa farda e tem
botas, e por vezes até é simpática. E o mais difícil de suportar é quando eles
são simpáticos. Quando o inimigo é simpático é sinal que somos completamente
inofensivos. És tão fraco que até o teu inimigo te ajuda (…)”
“Um Homem: Klaus
Klump”, pag 77. Ed. Caminho
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