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domingo, 11 de novembro de 2012

Gonçalo Manuel Tavares (n.1970)

por Mita Jacinto

(«nuca», Gérard Castello-Lopes (D.R.)

Há instantes em que a realidade desconexa, se desliga das premissas lógicas que normalmente intuímos como certas, da vulgaridade com que tomamos a vida de todos os dias, ordenada sem arrepios ou sobressaltos de maior que afectem a banalidade risível das coisas.

Mas na verdade, a realidade para cada um de nós não é assim: saltamos de um para outro assunto, entrelaçamos pensamentos em histórias reais ou imaginadas das personagens conhecidas ou não, com quem nos cruzamos, temos uma vida interior em que, como agora se diz, se desconstrói a cada momento a linearidade primária em que bocejamos as mais das vezes, produzindo enviesadas sinuosidades que nos fazem crer que afinal somos diferentes do comum dos mortais.

Trazer à luz os mundos interiores de que cada um é tecido, através das artes, nomeadamente da literatura, é obra não ao alcance de muitos escribas. Expressar através de palavras sentires de cada um de nós, de uma forma que nunca antes havíamos pensado e reconhecer nela a diversidade de que o mundo é feito, só raros o conseguem. Conseguir surpreender a cada livro, inovando o que já antes se achou original sem bizarria, só me apercebi como leitora, em português, com Saramago, Nuno Bragança, Lobo Antunes, Virgílio Ferreira e agora Gonçalo M. Tavares.

Ler “água, cão, cavalo, cabeça”, prosseguir por “Um Homem: Klaus Klump”, devorar “Jerusalém” cirandar pelo bairro dos génios e emocionar-se com “Uma Viagem à Índia” é uma obrigação que nos devemos pelo respeito que nós e os outros nos impõem.

“Uma bala entra na pedra. Faz buraco. Animal impaciente e rápido (a bala). Nos tijolos de pedra contamos uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete. Sete balas. Umas por cima das outras. E há pelo menos mais uma que acertou no menino. E uma outra que acertou no pai.
O pai tentava protegê-lo dos tiros, mas não protegeu o filho todo. Não lhe tapou por completo o corpo com o seu corpo. Também se encolhia, ele próprio, o pai. Porque o pai não é a mãe. Ao todo, no mínimo, nove balas. Duas que mataram dois seres vivos, e sete balas na pedra (…)”
“água, cão, cavalo, cabeça”, pag. 37. Ed Caminho

“ Quando se está preso, uma das vontades é urinar para cima de uma árvore. É completamente estúpido, mas penso vezes sem conta nisto. Com o pénis entumescido e a bexiga cheia, chegar ao pé de uma árvore e urinar. Apenas isto.
Aqui dentro a natureza usa farda e tem botas, e por vezes até é simpática. E o mais difícil de suportar é quando eles são simpáticos. Quando o inimigo é simpático é sinal que somos completamente inofensivos. És tão fraco que até o teu inimigo te ajuda (…)”
“Um Homem: Klaus Klump”, pag 77. Ed. Caminho

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