Por que persistirá em nós
a lembrança de certas criaturas com quem, feitas as contas, pouco privámos, em
verdade mal conhecemos, e pouco ou nada nos influíram, e se esvai a de outras que
nos foram muito mais efectivas, senão decisivas?
Foi não sei há quantos
anos, numa noite de sábado como tantas outras, ao balcão dessa tasca da Rua da
Atalaia, a Leitaria Belita (Tasca Azul para os não iniciados), que por assim dizer tropecei em Fraulein Dorit Slaby , berlinense incógnita que
desbastava a poder de abafadinho os momentos inaugurais de uma pândega que ela
prometera a si mesma. No estabelecimento taberneiro, as conversas cruzavam-se
habitualmente com a naturalidade de um cruzar pernas, e já não sei precisar de
que forma o nosso grupo, já algo mais avinhado do que permitiria a ética protestante
e luterana, chegou à conversa com Dorit, o que em tais conjunturas faz parte do
protocolo da noite ou noitada e, como diz o francês, va de soi.
Uma ressaca e poucos dias
volvidos, seríamos uns quantos reunidos num apartamento o seu tanto escalavrado,
também no Bairro Alto, precisamente na Rua da Rosa (de camiliana memória: nasceu
ali o «bruxo de Seide», o que se pode figurar algo inesperado a quem o associe
principalmente aos sertões e fidalgotes nortenhos; mas a verdade raro é
verosímil, e, sendo berço a um príncipe da boémia e das letras, parece que já
então o Bairro se preparava para ser o que hoje é…), prontos para receber a sua
lição gratuita de alemão, e donde havíamos de sair sempre com a roupa e cabelos
polvilhados do estuque que ia caindo do tecto qual neve no Monte Branco, e perplexos
e piscos por entre bárbaras declinações teutónicas.
A personalidade e figura excêntrica
desta pequena alemã, combinada com um percurso pessoal atribulado, despertavam-me
vagas reminiscências de não sabia eu que personagem literária, paralelo que
durante anos não logrei apurar. Nada se lhe conhecia de seu, e muito
provavelmente nada possuiria dos burguesmente chamados bens da fortuna: ganhara
uma televisão em certo sorteio, que vendeu imediatamente para subsistir em
Portugal durante uns meses. E vagueara um pouco por todo o mundo, dos arrozais
cambodjanos às florestas finlandesas, sempre à custa de expedientes tais e
quejandos.
Não obstante, a sua
postura perante a vida e os outros antes se diria francamente aristocrática. Sem
horas certas para nada, cultivava um total desprendimento dos compromissos
assumidos. Desprezava toda a ambição que fosse além do dia seguinte, do próximo
bródio. Depois de partir, jamais escreveu a alguma das suas amizades, apesar
das facilidades oferecidas pelo correio electrónico, mas igualmente sem que
ninguém lhe guardasse rancor por isso, até ao dia de hoje.
A pouco e pouco, na
correnteza de algumas visitas a Berlim, fomos-lhe sabendo a infância, passada no
Bloco de Leste, o padrasto polaco, o câncro vencido, um maxilar reconstruído,
etc. Enfim, um vale mais de lágrimas do que de rosas.
Até que lhe perdemos o
rasto…
Dizia eu mais acima que durante
muito tempo não atinei com a criatura livresca que esta rara avis in terra me evocava. Foi então que este desaparecimento
súbito acabou de me restituir a figura inefável de Holly Golightly, personagem igualmente
mirífica, a transcender a realidade da sua condição impressa no livro do
primoroso Truman Capote e a materializar-se ante os meus olhos na figura intangível
e fugaz da amiga alemã!
Afinal, existem, ou, como
diria, e aliás disse, o grande Wilde: «Life
imitates Art far more than Art imitates Life… Life holds the mirror up to Art,
and either reproduces some strange type imagined by painter or sculptor, or
realizes in fact what has been dreamed in fiction.»
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