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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Necessidades educativas especiais: do desvio à inclusão

por Sara M. Garcia

“Como se aprende sobre a diferença humana?

Deve-se ensinar às crianças que os seres humanos são muito diferentes entre si e explicar-lhes em que se diferenciam, para então mostrar que essas diferenças podem ser uma fonte de enriquecimento para todos.”
- Humberto Eco



Ao longo da História, a humanidade não tem equacionado sempre da mesma forma a problemática da “deficiência”, bem como da Educação Especial.

            Numa breve contextualização, evidenciam-se as três etapas evolutivas da Educação Especial:
- A primeira teve início no século XIX e prevaleceu até meados do século XX, a chamada Segregação. Destacam-se as figuras de Jacob Rodrigues e Jean Itard, com as suas experiências científicas em crianças portadoras de deficiência. Surgem as escolas residenciais, a defesa da concepção envolvimentalista de inteligência (o meio é valorizado, em detrimento dos factores biológicos), aplica-se a “escala métrica de inteligência” e o conceito de “quociente de inteligência” (Q.I), que vêm acentuar a categorização e rotulação dos alunos. Neste período, prevalece a ideia de que os alunos com deficiência não deveriam frequentar o ensino regular por constituírem um factor de perturbação.

- A segunda está alicerçada no movimento de crítica e contestação, durante os anos 60 e 70, às práticas segregacionistas, designando-se Integração Educativa. Esteve associada a uma gradual revisão das teorias educativas (há o entendimento de que os alunos em regime de segregação em classes especiais não apresentavam melhores resultados do que os alunos com deficiência integrados em classes regulares), à formação dos primeiros movimentos associativos (de pais/ encarregados de educação e das primeiras organizações de portadores de deficiência) e a uma nova acepção de inteligência – a da modificabilidade cognitiva (por Reuven Feuerstein). A nível político, são implementadas novas orientações (Public Law, 1975 – 1990 e a Warnock Report em 1978, ambas medidas legislativas americanas, que pretendiam a promoção da igualdade de oportunidades educativas), inauditas decisões históricas acerca dos direitos civis (ecoam, nos E.U.A, as vozes de Luther King, Rosa Parks e de Harvey Milk). Não esquecendo, claro, em 1948, a Declaração dos Direitos Humanos.

- Nos anos 80 e 90 desencadeia-se uma nova dimensão da cultura escolar, acreditando que a escola deve responder e adaptar-se às necessidades da criança, em defesa de “uma escola para todos”. Elevando-se, aqui, a Inclusão. Este apelo à mudança centrou-se, essencialmente, no currículo. Segundo o R.E.I - Regular Education Initiative – procurava-se que a educação regular fosse global (1986) e que os serviços de educação especial se associassem ao ensino regular, de modo a que fossem atenuadas diferenças e que se estabelecessem práticas pedagógicas direccionadas para salas de aula mais inclusivas. Em 1994 são apresentados os Procedimentos-Padrões das Nações Unidas para a Equalização de Oportunidades para Pessoas Portadoras de Deficiências, por via da Declaração de Salamanca. Neste documento é abroquelado que todas as crianças devem aprender juntas e que as escolas regulares, enquanto comunidades abertas e solidárias, devem ser os meios mais eficazes no combate a atitudes discriminatórias, reajustando e melhor planificando os seus currículos (instrumentos, estes, funcionais e de flexibilidade pedagógica).

“A perspectiva da Escola Inclusiva é sim bem oposta à da escola tradicional e integrativa, ao promover uma escola de sucesso para todos, ao encarar os alunos como todos diferentes e necessitados de uma pedagogia diferenciada (…) ” (Perrenoud, 2001)

Dos Discursos às Práticas
            Podia mencionar a definição de “criança com deficiência” (aceite internacionalmente pelo Council of Exceptional Children, no I Congresso Mundial sobre a Educação Especial), mas prefiro apelar, sempre que posso, à democratização das oportunidades educacionais que será, plenamente, concretizada quando todos percebermos a urgência da implementação, por inteiro, de um projecto sólido, como o da inclusão, em resposta às múltiplas diferenças pessoais, sociais, culturais e políticas que existem. O caminho, actualmente, apresenta saliências. Muitos são os que se governam pelo “politicamente correcto”, esquecendo o concreto, as acções, a faceta pragmática do tema. Hoje, face a uma Escola de todos & para todos, interessa-nos a conjugação de esforços efectivos (entidades governamentais, pais/ enc. de educação, professores e Escola) a favor da plena e eficaz exequibilidade de uma educação inclusiva, que se faz de forma gradativa, contínua, sistémica e programada, para que todos possam aprender juntos, a ritmos e estilos de aprendizagem diferenciados. Estando, assim, em cada um de nós, a defesa da cidadania e dos direitos humanos, no fundo, a proclamação de princípios emancipatórios, como a igualdade e a liberdade.

            Actualmente, as diferenças motoras/ físicas, cognitivas (deficiência mental e dificuldades de aprendizagem, como a sobredotação), os problemas comportamentais, mais do que serem vulgarmente entendidas como casos de “aluno-problema” ou de “aluno desvio” deviam, antes, significar que a heterogeneidade nas turmas é uma realidade, com a qual podemos e devemos lidar, não a partir de um ensino direccionado para o “aluno médio”, mas, por via de um conjunto de estratégias que possibilitem, a cada aluno, atingir o seu máximo, na realização dos objectivos didácticos.

“O facto dos alunos serem todos diferentes não implica que cada um tenha de aprender segundo uma metodologia diferente; isto levar-nos-ia a uma escola impossível de funcionar nas condições actuais. Significa, no entanto, que se não proporcionarmos abordagens diferentes ao processo de aprendizagem estamos a criar desigualdade para muitos alunos.” (Heward, 2003)

Condições necessárias à prática inclusiva: Escola – Professores – Sala de aula
            Muitos são os problemas levantados nas escolas, abordando diversos obstáculos à diferenciação e à inclusão: a rigidez curricular, avaliativa e metodológica, a carência de recursos humanos e materiais (falta de material pedagógico adaptado e de pessoal especializado para dar suporte ao professor titular), as dificuldades na reavaliação logística e estrutural da escola (e.g. a eliminação de barreiras arquitectónicas), entre outros. Todavia, há que explicitar que não existe uma receita universal antidiferencialista modelo, existem, pois, estratégias e acções educativas eficazes, da Escola Pública, na ordem do respeito pela dignidade humana.

            A aplicação destas metodologias passa, exactamente, pelo Professor (ensino regular e ensino especial) e pelo ambiente privilegiado à aprendizagem – a sala de aula. Salienta-se, assim, a indispensável valoração de uma boa e sólida formação de docentes do ensino regular, para que estes, mais tarde, estejam devidamente apetrechados das ferramentas necessárias à execução de uma ação inclusiva e para que consiga reagir, de modo veemente, às diversas e peculiares necessidades educativas, com as quais se pode vir a confrontar. Outro ponto essencial, diz respeito às expectativas dos docentes, no desempenho e auto-realização da criança (o denominado “Efeito Pigmaleão”), o que, consequentemente, levará a uma reavaliação de concepções, de modo a que o professor inclua a aceitação das diferenças nas suas actividades lectivas. Por sua vez, os professores de educação especial (com elevado grau de especializações em N.E.E) têm um papel bastante relevante, não só por se responsabilizarem pelo atendimento directo das crianças e jovens com N.E.E, bem como actuarem como consultores de apoio ao professor do ensino regular, num trabalho conjunto, que pretende a identificação de problemas e o ajustamento das alternativas programáticas e de avaliação e/ou orientação do aluno com N.E.E.

            A sala de aula, por seu turno, é apontada como a oportunidade que as equipas pedagógicas têm de fazer da inclusão uma realidade coesa. Neste cenário, procura-se, sobretudo, uma educação para os valores - aceitação da diferença, o respeito pelo Outro e o zelo pelo seu bem-estar físico e emocional -, um ensino por níveis diversificados (preparação das aulas com vista às necessidades especiais dos alunos), o estabelecimento de regras de funcionamento adequadas a actividades diferenciadas (em grupo, ou individuais, como o plano individual de trabalho - PIT) com auto-correção. Este sistema de acção torna possível, ao professor, seguir e supervisionar a turma, e, claro, ter oportunidade de auxiliar os alunos com dificuldades educativas, fazendo uma avaliação muito mais directa e corrente (identificando progressos e retrocessos na aprendizagem).

            Como estratégias preponderantes no ensino de crianças com N.E.E, têm-se feito notar a educação física adaptada (e.g. actividades aquáticas), o ensino com recurso à multimédia e sistemas pictográficos (e.g. a comunicação bliss), a dançoterapia, a música, a equitação adaptada, as artes plásticas e dramáticas, entre outras actividades.
            Acima de tudo, o ensino de crianças portadoras de deficiência deve ir ao encontro da minimização das suas dificuldades (pela orientação de profissionais bem formados), mas, certamente, deverá engrandecer as potencialidades destes alunos, auferindo-lhes os melhores recursos para a sua construção pessoal.

            Uma Escola para Todos já existe. O que nos escapa é que todos estejam, devidamente, aptos e dedicados na manutenção deste complexo Projecto Inclusivo do Ser Pessoa.
           

Referências bibliográficas:
HEWARD, W.L. (2003). Ensino e aprendizagem: dez noções enganadoras limitativas da eficácia da educação especial.
PERRENOUD, P. (2001). A Pedagogia na Escola das Diferenças (2ª edição). Porto Alegre: Artmed Editora.
UNESCO (1994). Declaração de Salamanca e Enquadramento da Acção na Área das Necessidades Educativas Especiais. Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Aceso e Qualidade. UNESCO. Salamanca. Espanha.

2 comentários:

  1. Quando andava na primária tínhamos uma turma de necessidades especiais. Lembro-me que tinham toda uma variedade de alunos com os mais variados problemas de integração e aprendizagem. Os alunos não se integravam bem na escola uma vez que estavam sempre à parte. Muitos eram maltratados pelas outras crianças, algo que muito me perturbavam, pois mesmo tendo só 7 anos, já sabia que eram crianças como as outras e passava muito tempo a brincar com elas. Concordo com a inclusão destes alunas nas turmas. Cheguei a ter uma aluna com Síndrome de Down na minha turma e apesar de todas as dificuldades que sentia nas aulas ficava sempre muito feliz por poder estar com os meninos "normais" (era o que se dizia na altura).

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    1. Lilrien,
      Antes de mais, agradeço-lhe a partilha de opinião.
      Sem dúvida que um sistema educativo coeso, passa, exactamente, por uma Escola pré-disposta a alterar os seus padrões de funcionamento e demais estruturas, para que possa dar a melhor resposta às necessidades dos seus alunos. Devendo, portanto, assentar num modelo pró-activo de Inclusão. O necessário é mostrar a todas as crianças que a riqueza da educação (ensino- aprendizagem e para a vida!) encontra-se na diversidade, nas diferenças (abolição de preconceitos) e que um Ensino para Todos (sustentado numa sólida formação de profissionais pedagógicos) é possível, desde que atenda aos estilos e ritmos de aprendizagem de cada um.
      Uma vez mais, obrigada!
      Um apelo a que fique atenta à secção “Educação” e às restantes áreas do blog.

      Sara M. Garcia

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