1860 (Rússia) -1904
(Alemanha)
Muitas vezes senti que o teatro era insensível por demasiado teatral e
melodramático, para que me concentrasse na espessura das personagens.
Até ler as primeiras peças deste dramaturgo, até ver “As Lágrimas
Amargas de Petra von Kant” de Fassbinder, até encontrar Bergman em “Persona” ou
nos “Morangos Silvestres”.
Ler “A Gaivota”, “O Jardim das Cerejeiras”, “O Tio Vânia” ou “As três
Irmãs” é aceder ao mundo do que pode ser dito com invariável elegância, subtileza
e rigor numa aparência diária, quotidiana, desprovida (aparentemente) dos
excessos da vida interna das marionetas que nos habitam.
Já li algures que refutou Tchékhov a acção. Talvez. Talvez essa seja uma
leitura. As personagens mais não fazem que “ir à sua vida”, ora se sentam, ora
conversam, ora amuam, ora passeiam pela casa ou jardim, ora fazem e desfazem
malas, ora choram, riem, não se importam nada com o escritor ou o espectador ou
leitor, são deles independentes, não querem agradar, assinalar, nem moralizar
ninguém, mas em cada gesto, em cada palavra foi concentrada a pérola do colar
de emoção e sentimentos que os animam e dos quais não podem separar-se por
serem os sentidos possíveis do seu pensar. Do seu ser.
Afinal, a vida é assim, feita de simbólicos gestos e palavras camuflados
como banais na tentativa, as mais das vezes frustradas, de manipular ou
esconder a verdade dos fios que nos movem. Ou de a fabricar. Ou de a mostrar.
A vida que temos qual é? Que frustrações nos determinam o caminho? Que
sentimentos e amores nos guiaram? Não é no íntimo cenário doméstico que as mais
dramáticas e surdas guerras ecoam? Não é a existência feita de palavras e
pessoas simples, de tédios dramáticos?
Que diz o que não é dito? Que é dizível?
Ler Tchékhov é um súbito prazer. Tanto mais actual quanto se reconhecem ali
os sinais da tentativa de regresso a uma normalidade ameaçada pelos ventos de
mudança.
Igual fulgor e intensa suavidade só voltei a sentir em Tenessee Williams
e Eugene O`Neill, mas isso é para outra conversa.
“-Anda sempre de preto
porquê?”
“-Estou de luto pela minha
vida. A minha vida é uma desgraça.”
“A Gaivota” de Anton Tchékhov
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