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terça-feira, 31 de julho de 2012

O pedaço de céu de Rebecca Ferguson

por João Xará

A proliferação de talent shows musicais no pequeno ecrã é um evidente fenómeno dos dias de hoje. O final da 5ª temporada portuguesa de Ídolos tem apenas 2 dias, mas a mesma canção toca num bis permanente: quem ficará por aqui a fazer música? Com o 2ºlugar no X-Factor britânico (2010), Rebecca Ferguson parece ter (re)descoberto a fórmula perfeita do puro R&B e já mereceu comparações a Aretha Franklin e Macy Gray. Heaven é o seu álbum de estreia.


Num mundo competitivo como é o da música vejo-me obrigado a socorrer da afirmação da jovem, mas promissora cantora portuguesa Luísa Sobral sobre os programas de talento musical (onde também participou), aqueles programas são feitos apenas para o público e nunca para o artista.

Apesar de não ter sido coroada como vencedora, Rebecca Ferguson consegue aquilo que não está ao alcance de todos, um contrato discográfico. Apresentou-se tímida e pouco confiante diante da audiência massiva do X-Factor e interpretou “A change is gonna come” um clássico de Sam Cooke. Natural de Liverpool, Ferguson ainda recebeu o apoio da cantora Adele durante as suas prestações no programa, mas é com o fim do programa que, com 23 anos e dois filhos, a mudança finalmente impera.


Foi na rádio Antena 1 que conheci a música que me introduziu a Rebecca Ferguson, Glitter & Gold. How good or bad, happy or sad / does it have to get? é a pergunta que arranca uma das melhores canções do disco e que se dirige a quem se rodeia de dinheiro e bens materiais. Cheia de soul a voz ecoa numa viciante batida groove, avisando que o disputado ouro não aconchega ou aquece as noites frias de solidão. Este é de resto um tema bastante presente no álbum como demonstra o single de avanço Nothing’s Real But Love. A guitarra acústica e o piano acompanham desta vez, uma voz mais tímida e singela tão bem recebida pelos críticos (em oposição às baladas pretensiosas e de cliché invariavelmente associadas a cantoras que saem destes formatos televisivos). Antes do sucesso, Rebecca jamais acreditaria na mensagem desta canção, people would be saying Oh, money doesn’t bring you happiness’ - and I’d be like ‘Whatever - tell that to my empty fridge!* Apesar de não representar a força do álbum, a música foi recebida como um símbolo de genuinidade e simbolizou o controlo e o estilo musical que decidiu assumir, depois de co-escrever todas as canções e de vencer a resistência da editora inglesa.


Esta confiança perdura no tema mais funky e orquestrado de Heaven, Fairytale (Let me Live My Life This Way). A influência de Aretha Franklin torna-se audível, mas também as comparações à Queen of Soul, que surgem muito cedo, mas que têm razão absoluta de ser. Os coros que relembram as divas dos anos 60, os trompetes entusiastas e o saxofone por Phil Todd só confirmam a dita referência. O teclado vibrante que abre a canção espalha-se num conto de fadas ao qual a cantora prefere não acordar porque I'd rather live my life this way/ It's my life anyway.



Mas o álbum também se faz de baladas vulneráveis, como Shoulder to Shoulder onde apenas o violoncelo e o piano acompanham o que Fergusson proclama, (…) until we realize that real love is free. Em Teach Me How To Be Loved, exorciza uma relação fracassada marcada pela incerteza de quem ama como deve, mas que não obtém o mesmo em troca.

Rebecca Ferguson parece distanciar-se de fenómenos como os One Direction ou Leona Lewis (saídos do mesmo programa de televisão). A verdade é que nos últimos anos, o Reino Unido tem atirado artistas femininas desconhecidas da soul para o estrelato mundial muito graças a Amy Winehouse. Apesar da jovialidade, Rebecca Ferguson parece conseguir demarcar-se de Adele ou Duffy e merecer o seu próprio foco de sucesso inesperado. Com 25 anos, a cantora britânica conquistou alguns países como Itália, Alemanha, Austrália e tentou recentemente a sua sorte em território estadunidense alcançando a posição número 3 da tabela de álbuns Hip-Hop/R&B.

Gracioso, funky, fresco e subtil ao ponto de marcar pela diferença, este seguro e curioso trabalho discográfico embute discretamente a saudade que desconhecia, a de ouvir verdadeiro R&B. Duplo platinado no Reino Unido, Heaven consegue aquilo que os artistas estreantes tanto almejam no primeiro disco de estúdio: serem elogiados e comparados a artistas de renome (como a Aretha Franklin) mas, ao mesmo tempo, introduzidos como novidade conquistando assim o seu espaço, um pedaço de céu. Ainda bem que sintonizei a Antena 1, naquele dia.

“I knew I could sing but I didn’t believe in myself enough (…) I needed to hear that I was good”
                    Rebecca Fergusson, Rolling Stone


* referiu à publicação blues and soul

2 comentários:

  1. O álbum de estreia da Rebecca tem bastantes boas músicas, ouço-o várias vezes, sendo a preferida a "Too Good To Loose". Bom artigo!

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  2. Muito obrigado pelo comentário.

    Foi uma boa surpresa, de facto. Não só por se libertar da formatação que o formato dos reality--shows exercem, mas sobretudo por ser um disco de estreia que em muito se distingue da fórmula pop feminina.

    Tenho pena que tenha passado despercebido à maioria, mas ainda vamos ouvir falar mais dela.

    Entretanto, e nem a propósito, é lançada hoje a versão deluxe de Heaven com a nova música Backtrack.

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