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terça-feira, 3 de julho de 2012

As Lições de Lauryn Hill

por João Xará

Foi quando Whoopi Goldberg resolveu meter-se pela segunda vez num convento, que finalmente dei conta de uma jovem que cantava sem esforço melodias de gospel, dona de uma voz que jamais tinha escutado. Na minha mente achei impossível tamanha maturidade materializar-se em tal pequeno corpo, mas sobretudo achei inacreditável como ninguém tinha levado a miúda para o palco do estrelato. A pesquisa levou-me rapidamente ao embaraço. Lauryn Hill era afinal bem conhecida do mundo, era L Boggie membro da visionária banda de hip hop, The Fugees.


A banda dos anos 90 contava com Wycleaf Jean e Pras Michel e foi com o seu segundo álbum The Score (1996) que alcançou a aclamação da crítica e o sucesso comercial. O disco vendeu mais de 10 milhões de unidades e trouxe orgulho ao mundo do rap e do hip-hop com No woman No cry de Bob Marley & The Wailers e o maior êxito com Killing me softly, uma fantástica versão com influências reggae de Roberta Flack.


O álbum a solo viria dois anos mais tarde, o colossal The Miseducation of Lauryn Hill que incorpora diferentes sonoridades como o hip hop, soul, r&b, reggae e o rap vendendo mais de 18 milhões de cópias e somando 10 nomeações aos grammy. O título deste trabalho discográfico é baseado no livro de Carter G. Woodson, The Mis-Education of the Negro onde o autor aponta a ineficácia do sistema de ensino ou ausência de escolarização como reactores de uma maior clivagem inter e intrarracial.

É precisamente o meio escolar que Lauryn escolhe imprimir na primeira faixa deste álbum, Intro. Toca a campainha de uma sala de aula. Suaves acordes e dedilhados de uma guitarra ditam o ambiente acompanhado de uma harpa e de uma sonoridade ainda tímida de reggae. O professor percorre a lista de chamada e Lauryn Hill não está presente. Esta atmosfera será recuperada em pequenos interludes ao longo do álbum no final de algumas músicas, como em Lost Ones. Aqui solta-se já a batida contínua do hip-hop que dá primazia à voz interventiva com o rap que confirma a cantora como hábil MC. Lauryn afirma que as consequências são tudo menos coincidências, proclamando ao som de um esporádico baixo funky (primeira evocação do reggae) uma verdade para ela, irrepreensível: you might win some but you just lost one. Restitui-se o ambiente da sala de aula onde o professor pede aos alunos que soletrem a palavra que será o tema de discussão escolar e do álbum, o amor.

Ex-Factor é uma canção que demonstra densas malhas de r&b e onde a cantora deixa brotar a sua forte influência do soul. Apesar de terminar num breve, mas fantástico solo de guitarra eléctrica, é no início que percebemos que a cantora fala de uma relação que ainda está por sarar. Na batalha do desgosto que trava, reconhece que há inevitavelmente quem dê sempre mais (Tell me, who I have to be /To get some reciprocity). To Zion é o primeiro dos cinco filhos que a cantora teve com o Rohan Marley, filho da lenda do reggae, Bob Marley. A canção é como que um hino ao filho que assume quase um tom bíblico onde Zion parece ser a terra prometida que um dia Deus assegurou. Num registo que atravessa a fronteira do gospel, Lauryn Hill testemunha pela primeira vez a pressão excessiva que a carreira lhe traz e que, a meu ver, revela escolha do seu já longo afastamento, (But everybody told me to be smart/Look at your career they said,/ "Lauryn, baby use your head"/ But instead I chose to use my heart). A música conta com a participação de Carlos Santana.


O single de abertura, Doop Wop, catapultou Lauryn Hill para a escalada do estrelato e alcançou a posição cimeira do top da Billboard nos Estados Unidos. Transpirando hip hop e r&b, a música é um alerta para os problemas relativos à comunidade norte-americana (homens e mulheres) com raízes africanas, mas que se estende ao resto da sociedade. Autora da letra, Lauryn expõe a sexualização do corpo e estende-se nas referências eruditas e nos pecados do cristianismo ou islamismo. Esta explosão do saxofone com trompetes e a mão de DJ Supreme garantiu-he 2 grammys de “melhor canção r&b” e “melhor interpretação feminina de r&b”. O álbum conta ainda com outras raridades como a irresistível Can’t take my eyes of you ou Everything is everything que consolidou a mestria da cantora em conjugar diversos géneros e mostrou ao mundo o cantor, ainda desconhecido, John Legend.

Depois de fazer uma homenagem a Bob Marley com Turn the lights down low, a cantora desapareceu da vida pública, recusando entrevistas e actuando tímida e esporadicamente. A ausência quase que se perpetuou com o lançamento de MTV Unplugged No. 2.0, um disco ao vivo num concerto em Nova Iorque a Julho de 2001. A cantora apresenta-se quase exclusivamente com guitarra acústica com temas profundamente pessoais como a religião, sociedade, política e o amor. Se para muitos Lauryn triunfa ao despir os seus sentimentos nas letras e reduzir a música à sua base primária (poucos instrumentos), muitos tomaram a sua vulnerabilidade, excessiva demonstrando falta de confiança. A verdade é que Lauryn Hill quase que colapsa a meio de I gotta find a peace of mind que mostra, segundo muitos, a sua profunda desilusão com a indústria musical.


Vazaram algumas músicas no meio cibernauta ao longo destes quase 14 anos de ausência e já muitas promessas foram quebradas no que toca ao seu regresso. Nos últimos anos tem aparecido em alguns festivais como o Festival dos Oceanos de 2010 em Lisboa, ao qual me arrependo amargamente de não ter comparecido. Diz-se por aí que o 2012 é o comeback e de facto, Lauryn Hill disse já estar pronta e que tem coisas para dizer. Já lá vai o tempo em que aguardava ansiosamente por um novo álbum, agora resta mesmo esperar para ouvir de novo aquela voz grave, intensa e cheia de soul, quiçá mesmo um dote de Deus que tanto preza. Se tal não acontecer, sempre tenho este Miseducation que atravessou e ensinou todas as gerações e que é indiscutivelmente um dos melhores álbuns de sempre.

How you gonna win when you ain't right within? Lauryn Hill

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