Blogue de divulgação cultural, escrito por 28 pessoas. Um texto por dia, todos os dias.

sábado, 23 de junho de 2012

Sobre-racionalizar

por Isabel Chalupa

Fernando Pessoa lamentava-se por não ser capaz de sentir sem racionalizar, sendo que sempre que os seus sentidos captavam alguma coisa, a sua mente apressava-se a intelectualizá-la. Assim acontece connosco, hoje em dia, em relação a todos os filmes que vemos – mas não lamentamos. Não temos a capacidade de ver e sentir um filme sem começar a emprestar-lhe uma dimensão muito maior do que, muitas vezes, o próprio filme tem. Porém, não nos apercebemos do erro que estamos a cometer.


Vi hoje um documentário de Sophie Fiennes, The Pervert's Guide to Cinema, que filma um conhecedor Slavoj Žižek, psicólogo e psicanalista, a analisar inúmeros filmes sob a perspectiva das teorias freudianas. Muitos autores são incluídos nesta extensa reflexão sobre as pulsões cinematográficas, uns com maior coerência, outros com menor – Hitchcock, Fritz Lang, Ingmar Bergman, Francis Ford Coppola, Kubrick, Chaplin, David Lynch... Um documentário a não perder, mas que por vezes exagera na profundidade da sua análise.

Falar de Alfred Hitchcock é falar de Sigmund Freud. O mítico realizador era um confesso admirador das teorias do austríaco, autor de obras como a famosíssima A Interpretação dos Sonhos, e a utilização dos modelos psicanalíticos nos filmes do realizador britânico é por demais evidente, sendo inegável que Hitchcock estava para o cinema como Salvador Dalí estava para a pintura, ambos interpretando à sua maneira a visão freudiana dos sonhos. Em Psycho, a forma como os três andares da casa de Norman representam o modelo estrutural da psique, id, ego e superego, é clara; em Os Pássaros, a relação incestuosa e super protectora da mãe para com o seu filho é uma expressão das pulsões sexuais e do complexo de Édipo sobre o qual Freud disserta; no filme Vertigo (ou, em português, o absurdo A Mulher Que Viveu Duas Vezes), está bem patente o modo como para haver uma afirmação do seu desejo, primeiro o homem tem de humilhar e mortificar o desejo da mulher, impondo-se sexualmente sobre ela antes de passar ao acto em si.

Contudo, o mesmo não acontece com os filmes de muitos outros realizadores: reduzir a loucura de Lynch a mero calculismo psicanalítico é cruel. O próprio autor já declarou por diversas vezes que inclui certas coisas nos seus filmes simplesmente porque lhe apetece incluí-las. Em títulos como Veludo Azul, Mulholland Drive, Estrada Perdida ou Um Coração Selvagem, Lynch vai muito mais para além de Freud, ficando simultaneamente muito aquém. A sua insanidade cinematográfica é um misto de lógica e incongruência, sendo impossível caracterizar os seus filmes e a sua forma de pensar de acordo com um autor definido, ou dizer “ele fez isto porque queria dizer aquilo”. Esqueçam. Não é possível. E talvez seja mesmo aí que reside a beleza dos filmes de David Lynch.

Claro que é possível fazer uma reflexão psicanalítica de autores como Gaspar Noé, Christopher Nolan, Ingmar Bergman, Fritz Lang, Murnau, Coppola, Kubrick ou Chaplin (este sendo já algo rebuscado). Mas não podemos partir daí para começar a fazer semelhante abordagem a todos os filmes que nos aparecem a fime. Elevar uma simples comédia romântica a pulsões sexuais ou um Saw a pulsões de morte ou mesmo um musical à interpretação dos sonhos é absurdo. E houve um ponto nesse documentário – tal como há um ponto em todos nós – em que se começou a enveredar por caminhos ilógicos e sem sentido. Nem tudo tem um significado profundo e psicologicamente incerto.

É aí que incorremos no erro: por vezes, por maior dimensão de significância que um filme possa assumir, faz-nos bem recostar-nos e apreciá-lo sensitivamente; não desatar numa complexa análise intelectual. Por vezes, há que desfrutar verdadeiramente do filme, não começar a pensar em tudo o que ele encerra. Simplesmente ver – ou, como diz a sabedoria popular, comer – e calar. Desfrutem inocentemente do cinema, amigos, pois se não o fizerem, cedo se verão engolidos por uma espiral de raciocínio e intelectualização da qual, tal como Fernando Pessoa, lamentarão um dia não poder escapar.

FIM

'Pervert's guide to cinema'

Sem comentários:

Enviar um comentário