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sábado, 23 de junho de 2012

Aborto (ou: os Maravilhosos Prazeres de Assassinar Bebés)

por Lostio

Aborto. Dos temas de onde se consegue uma divisão o mais uniforme possível de apoiantes e críticos. Muito já foi este um tema de conversa, mas muita discordância continua este a gerar. Com este texto, pretendo dar uma pequena luz sobre alguns argumentos utilizados em discussões sobre o aborto, e reflectir sobre a sua validade e poder persuasivo.

“O feto é um ser humano com direito à vida, que não fez nada para não o merecer”
A típica classificação – O feto é um Homem, logo tem direito à vida. É um argumento forte, mas tem como base o pressuposto de que existe uma uniforme concordância sobre a classificação do feto como um ser humano. O que não é verdade! É verdade que, do ponto de vista científico rigoroso, a partir da concepção, o ovo fecundado é classificado como um organismo da espécie Homo Sapiens Sapiens e é, portanto, tecnicamente, um ser humano. No entanto, e especialmente num caso tão particular e concreto como este, não creio que a definição científica nos baste. Teremos de incluir, além do básico conceito biológico de ser humano, o conceito sociológico de Homem. O que distingue um Homem de apenas um ser vivo? É uma questão difícil, porque inclui interpretações tais como a sapiência, a autoconsciência, e a mera posse dos cromossomas e do DNA típicos da nossa espécie não basta para a categorização fiável, do ponto de vista social e político. Um bebé num útero não é contabilizado num censo, não é visto demograficamente como um cidadão até nascer.
O principal a retirar disto é que o argumento, apesar de chegar a uma conclusão viável e lógica, utiliza como premissa uma afirmação que não tem consenso geral – a classificação do feto como humano. Como tal, não é suficientemente generalizável para ter um bom poder persuasivo.

Há a destacar ainda que a utilização deste argumento do direito à vida implica a inexistência de casos de distinção de aborto. Ou seja, o aborto teria de ser ilegal em qualquer circunstância – mesmo que ele surgisse devido a uma violação, ou que ele se devesse ao facto de se prever que o bebé nasceria com severas deficiências. O argumento é de tal modo dogmático que, mesmo para esses casos, teríamos de dizer o mesmo: o feto é um ser humano com direito à vida. O facto de ter sido concebido violentamente contra a vontade da mulher, ou de apresentar deficiências, não lhe retira o intocável direito à vida, visto que não se lhe pode associar qualquer influência ou culpa.

Outro comentário comum de se ouvir por parte de quem se opõe ao aborto é a ideia de que “a mulher deve aprender a lidar com o erro que cometeu”. Apesar de este não considerar casos como a violação, apoia a ideia de ver a ilegalização do aborto como um castigo a quem praticou sexo banalmente ou descuidadamente. Apesar de ser evidente que qualquer pessoa que decida ter uma relação sexual deverá tomar as devidas cautelas, eu não consigo concordar com a ideia de que devemos forçar uma mulher a ter um filho indesejado só porque o preservativo rompeu ou porque ela se esqueceu de tomar a pílula. As ideias por detrás de tal posição são extremamente injustas:
Primeiro, não é direito do governo impor uma determinada posição quanto à moralidade da prática do sexo casual e banal. Mesmo que se associe uma conotação negativa a quem pratique sexo casualmente e descuidadamente, é nosso dever respeitar quem o deseje fazer, e não castigá-los. Isto porque, de um ponto de vista social e político, este estilo de vida não prejudica ninguém, não retira liberdades a ninguém. Ter uma vida sexual activa não é nenhum crime, nem o deverá ser, e, consequentemente, não há razão para merecer castigo, especialmente um como este.
Segundo, porque, por detrás da ideia de castigar a mulher, é trazida uma nova pessoa ao mundo. Um filho indesejado nasce, com o intuito de castigar a mãe pelo seu descuido. Ao castigar a mãe, esquece-se o efeito traumático que terá no filho, sabendo este que a única razão pela qual existe é por castigo à mãe.

Na minha mais sincera opinião, pouco existe de mais valioso numa sociedade e num sistema político que o respeito. Há que respeitar o direito da mulher de decidir se quer ter o filho ou não, em vez de simplesmente impor a nossa opinião sobre ela, e forçá-la a segui-la. Há que fornecer o direito à escolha, pois a única razão pela qual esta deveria ser restringida seria se interferisse com a liberdade ou com os direitos de outrem. O único caso em que tal aconteceria seria na classificação do feto como ser humano, pois esta escolha interferia com o seu direito à vida. No entanto, esta classificação é demasiado incerta para que a ilegalização do aborto seja algo a impor, daí que eu seja completamente a favor do aborto.


6 comentários:

  1. Texto muito equilibrado. Mostra que não existe uma razão e uma não-razão. Existem razões, prós e contras, que merecem uma discussão fundamentada e não dogmática.

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    1. Caro Luís, fico satisfeito por saber que apreciou o texto. :) Efetivamente, no assunto do aborto, tal como na maioria de outros casos, creio que devemos saber olhar para as duas faces da moeda, em vez de nos cingirmos a puras moralidades dogmáticas, e devemos saber analisar racionalmente os prós e contras de cada vertente.

      Muito obrigado pelo seu comentário!

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    1. xD lool Devo dizer que adorei este comentário. Um trocadilho simples, mas eficaz.

      Apesar de me ter deixado curioso sobre o que o faz crer que me encontro "perdido", como refere, fico satisfeito por ver que o texto, ou pelo menos o meu pseudónimo, teve impacto em si. ;) Obrigado pelo comentário!

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  3. Quem poderá dizer se é ou não moralmente condenável abortar? É um assunto que gerará sempre muita discussão e nenhum consenso. Se é verdade que o ser humano em questão nada fez para não merecer o direito à vida, também penso que, pelas razões por ti referidas, não se deva forçar uma mulher a ter um filho. A legalização do aborto leva a que cada um possa decidir consoante os seus próprios valores e lidar com sua decisão ao longo da vida. Não apoio o aborto, mas sou a favor da sua legalização.

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    1. A meu ver, a moralidade subjacente ao aborto está diretamente associada à classificação do feto como ser humano. Esse é, para mim, o cerne da questão e o principal motivo para se gerar discordância neste assunto.

      Isto porque, se o feto for efetivamente visto como um ser humano tal como todos nós, o aborto constitui assassinato, que é moralmente e legalmente condenável, independentemente da opinião do cidadão que o cometeu.

      Agora, será que devemos equiparar o aborto ao assassinato? Tal como elaborei no meu texto, eu não acredito que seja uma comparação justa, precisamente devido à ambiguidade do estatuto do feto como um ser humano, do ponto de visto social, humanístico e político.

      Assim sendo, se a moralidade do aborto não é tão dogmática como a moralidade do assassinato, o procedimento mais justo é permitir que as duas vertentes existam. Ilegalizar o aborto implica a imposição de uma vertente: a de que o aborto é assassínio. Legalizar o aborto permite que cada pessoa aja conforme a sua posição pessoal, o que é, para mim, o mais correto.

      A questão que pretendo focar é que devemos respeitar a diversidade de opiniões ao legalizar o aborto. Agora, o modo como cada um vê as moralidades subjacentes e se apoia pessoalmente a decisão de o fazer, são questões diferentes e obviamente subjetivas. Mas, ao legalizarmos o aborto, permitimos que cada um faça o que quer.

      Muito obrigado pelo comentário, Miguel! :)

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